Vínhamos de um mundo fervilhante. Aturdidos com as interpretações emprestadas às Leis Divinas pelos mais diversos grupos religiosos, já havíamos percorrido a longa Avenida dos Conhecimentos, quando atingimos grandiosa construção que nos restava visitar.
Contemplamo-la, em sua fachada austera.
Ah! Sim! Era bem aquela. Ali estavam em seu frontispício, em letras brilhantes, as palavras “O CÉU E O INFERNO”, e, como subtítulo, a esclarecedora legenda que buscávamos: A Justiça Divina, segundo o Espiritismo.
Avançamos e batemos à porta.
Um ressoar de passos e a entrada se abriu, de par em par, pondo-nos diante do dono da casa para a singular entrevista que nos propuséramos realizar na data do primeiro centenário daquele imenso edifício-escola.
O nosso anfitrião, Allan Kardec, recebia-nos com um sorriso vaporoso na sua fisionomia compenetrada. E amavelmente conduziu-nos a pequena saleta, atravessando um bem iluminado corredor.
Não sopitando a curiosidade, apresentamos, de imediato, as nossas perguntas.
– Por que tantos sistemas ou modos diferentes nas religiões para interpretar a Justiça Divina, diversificando-se tanto os conceitos de céu, inferno e purgatório de credo para credo?
O tranqüilo recepcionista esclareceu-nos:
– Instintivamente tem o homem a crença no futuro. Mas, não possuindo até agora nenhuma base para defini-lo, a sua imaginação fantasiou os sistemas que originaram a diversidade de crenças.
Desferimos a segunda questão:
– E acaso não teme pela vitalidade desta sua obra?
Kardec fitou-nos, como a indagar a razão de nossa pergunta e apressamo-nos a complementá-la.
– O mundo é dia a dia mais trepidante. Aviões supersônicos transpõem os limites da imaginação. Nossa linguagem é renovada. A astronáutica empenha-se em perseguir outros planetas… O progresso está abalando dogmas e alicerces de muitos sistemas religiosos! Em função, pois, desse avanço técnico-científico é que indagamos se porventura não teme pela vitalidade de sua obra centenária!
Antes de terminarmos a justificação, ele já estava sorrindo amigavelmente.
– A Doutrina Espírita sobre o futuro – ponderou-nos –, não sendo obra de imaginação mais ou menos arquitetada engenhosamente, porém, o resultado de observação de fatos materiais que se desdobram hoje à nossa vista – congraçará, como já está acontecendo, as opiniões divergentes e flutuantes e trará, gradualmente, pela força das coisas, a unidade das crenças sobre esse ponto, não já baseada em simples hipóteses, mas na certeza.
Deixamos que um silêncio se estabelecesse, aguçados em nosso interesse por descobrir o conceito espírita da Justiça Divina.
Desnundando-nos os pensamentos, Kardec ergueu a diáfana cortina que descia sobre a Humanidade, afirmando-nos:
– Eis o véu, o inferno e o purgatório.
Era a própria Terra que se desdobrava aos nossos olhos, com toda a sua Humanidade. Os homens, em se locomovendo no palco de suas existências, transportavam os corações e os cérebros imensamente destacados. Nuns, esses centros de vida refulgiam quais usinas de grande potencial iluminativo, envolvendo-se de um halo natural de superioridade espiritual. Noutros, havia penumbra; marchavam contristados ou irresponsáveis, vibrando egoísmo e orgulho e portando olhares maliciosos e malignos. Em outros, ainda, a luminosidade era intermitente, alternando-se com pálidos clarões e sombras leves, denotando que empreendiam batalha árdua para se libertarem de vestes rotas e sujas, com as quais se haviam agasalhado por longo tempo.
Exclamávamos espantados:
– Céu, inferno e purgatório estão no coração e nas mentes das próprias criaturas! São conduzidos por toda a parte…
– Sim! – confirmou Kardec. – Nenhum contorno traça os limites. Os mundos adiantados são as últimas estações do caminho dos Espíritos, estações que as virtudes franqueiam e os vícios interditam,
– Inferno e purgatório, então, são estados transitórios…
Com breves palavras, ele nos elucidou pacientemente.
– O homem repara em uma vida de provações o que a outrem fez sofrer em anterior existência. As vicissitudes que experimenta são, por sua vez, uma correção temporária e uma advertência quanto às imperfeições que lhe cumpre eliminar de si, a fim de evitar males e progredir para o bem. São para a alma lições de experiência, rudes às vezes, mas tanto mais proveitosas para o futuro, quanto profundas as impressões que deixam. Essas vicissitudes ocasionam incessantes lutas que lhe desenvolvam as forças e as faculdades intelectivas e morais. Por essas lutas a alma se retempera no bem, triunfando sempre que tiver denodo para mantê-Ias até o fim.
A empolgante síntese revelava a escala natural da evolução, com a conquista gradativa da perfeição de cada criatura.
– Para registrar todas essas sensações – dissemos – a alma humana deverá ter individualidade definida, e não poderá jamais ser tida como uma nuvem de fumaça ou simples poeira, como é comum idealizar-mos a nossa essência eterna!
Tomando-nos pelo braço e conduzindo-nos a compartimento mais além, informou-nos, prestativo:
– Para os espíritas, a alma não é uma abstração; ela tem um corpo etéreo que a define ao pensamento, o que muito é para fixar as idéias de sua individualidade, aptidões e percepções. A lembrança dos que nos são caros repousa sobre alguma coisa de real. Não se nos apresentam mais como chamas fugitivas que nada falam ao pensamento, porém, sob uma forma concreta que antes no-los mostra como seres viventes.
Sensibilizante melodia chegava-nos sutilmente, parecendo nascer de todo o compartimento que penetrávamos.
– Este é o plano dos Espíritos felizes.
Sob a apresentação do sábio lionês, encontramo-nos com personalidades encantadoras.
Sandon, Van Durst, Bernardino, a Condessa Paula…
Detivemo-nos ante um simpaticíssimo senhor, vivaz e humorado.
– Samuel Filipe – apresentou-me Kardec, detalhando: – Quando na Terra, teve uma vida obscura, laboriosa e bordada de rudes provações. Admira-se ainda quando atribuem real mérito aos seus predicados de bondade e trabalho.
Com familiar sorriso, Samuel colocou-nos a vontade.
– Qual a sensação de seu desenlace? – indagamos.
Quase não tive agonia: a morte sobreveio-me como um sono, sem lutas nem abalos. Sem temor pelo futuro, não me apeguei à vida e não tive, por conseguinte, de me debater nos últimos momentos. A separação completou-se sem dor, nem esforço, sem que eu mesmo de tal me apercebesse.
– E esse mundo feliz, fê-lo esquecer a família e os amigos encarnados?
Meneou negativamente a cabeça.
– Se os tivesse esquecido seria indigno da felicidade que gozo. A Lei não recompensa o egoísmo, pune-o.
As informações eram preciosas.
Alongaríamos as indagações com todos os que podíamos encontrar, não fora a lembrança amorosa de Kardec da brevidade do tempo de que dispúnhamos para a tarefa em curso.
– Visitemos os Espíritos em condições medianas.
Uma como penumbra pairava no compartimento em que adentrávamos, dificultando-nos a visão geral do panorama. Só com algum esforço nos aproximamos dos que ali se encontravam e que estavam em plena posse de um corpo similar ao terreno.
José Bré – de quem nos acercamos pela bondade de Allan Kardec – atinha-se a discorrer sobre o abismo que medeia entre a honestidade perante os homens e a honestidade perante Deus, parecendo autobiografar-se dolorosamente.
– Entre Vocês, na Terra, é reputado honesto aquele que respeita as leis de seu país. Honesto, assim, é aquele que não prejudica o próximo ostensivamente, embora lhe arranque muitas vezes a felicidade e a honra, visto o Código Penal não atingir o culpado hipócrita. Não basta, porém, para ser honesto perante Deus, ter respeitado as leis dos homens; é preciso antes de tudo não haver transgredido as Leis Divinas…
Estremecemos, involuntariamente, com essa inovação no conceito de honestidade e com as conseqüências sobre os que fazem por ignorar tais princípios.
Centralizamo-nos, a seguir, em Helena Michel, de fisionomia afetuosa e dócil.
– Você é feliz, Helena?
– Não sou infeliz; porém, tenho muito ainda a fazer para aproximar-me da situação dos bem-aventurados. Pedirei a Deus me conceda voltar a Terra para reparação do tempo que ali perdi na última existência.
Trabalhando intensamente, todos ali aspiravam ao retorno à escola da carne para refazer a caminhada e saldar débitos contraídos com os semelhantes. Para a felicidade desses Espíritos bastaria que saneassem a infelicidade que semearam por seus atos na derradeira romagem terrena.
– Vamos, agora, ao compartimento onde se acham Espíritos infelizes – convidou-me Kardec.
Este local em tudo se assemelha a um pântano, recoberto de uma neblina que nasce do próprio lodo que forma o solo pegajoso.
A paisagem é triste e desoladora.
– Quem se encontra neste ermo?
Nossa voz ressoou dolorosamente, despertando gemidos lânguidos nas sombras.
– São nossos irmãos sofredores – explicou Kardec.
Mal ensaiamos avançar para descobrir na vegetação crestada alguma forma humana e Kardec conteve-nos, indicando um jovem que estava sobre um túmulo.
– Esse é Augusto Michel. Está ligado perispiritualmente ao próprio corpo, que, soterrado no túmulo, experimenta as fases naturais da decomposição. Registra em si mesmo as sensações angustiosas, estupefato e paralisado.
Pressentindo a nossa aproximação, suplicou por preces.
– Fui no mundo um ser inútil – gemia e chorava, hirto. – Não fiz uso algum proveitoso de minhas faculdades. A fortuna serviu apenas à satisfação de minhas paixões, aos meus caprichos de luxo e a minha vaidade. Não pensei senão nos gozos do corpo, desprezando os da alma e a própria alma.
E, num espasmo de dor, caiu de joelhos.
– Oh! Descerá a misericórdia de Deus até mim, pobre Espírito que sofre as conseqüências de suas faltas terrenas?
Numa entonação súplice, rogou-nos:
– Orem para que Ele me perdoe, libertando-me das dores que ainda me pungem…
Mal desferira o seu apelo e um ancião, Francisco Riquier, de epiderme enrugada e olhos esbugalhados, puxou-nos a roupa e agarrou-se a nosso braço.
– Desbarataram meus bens como se não mais me pertencessem. Façam que se me faça justiça, já que a mim não me ouvem, e não quero presenciar infâmias tais. Dizem que eu era usurário, e guardaram-me o cofre. Por que não me querem restituir? Acharão que foi mal ganho?
Outros quadros lancinantes de desequilíbrio espiritual desfilaram aos nossos olhos na triste e solitária região, furtando-nos as palavras e interrompendo-nos as indagações.
Que mais indagar, afinal, a almas tais que se cingem aos seus problemas materiais, evidenciando que a vida realmente continua, com seu séqüito de conseqüências inevitáveis?
Encaminhamo-nos para outro compartimento…
Eis que se nos depara um recanto ainda mais desolado, topograficamente estranho e aterrador. O ar pesado transportava o odor de carne em decomposição adiantada, qual se centenas de mortos não houvessem recebido ao menos a bênção de uma campa para o processamento da transformação cadavérica do corpo!
– Aqui se encontram os suicidas.
Um arrepio levantou-me os cabelos.
Uma jovem tresloucada irrompeu em ensurdecedora gritaria, comprimindo a própria fronte. Clamava por alguém, a quem afirmava amar com todas as forças de sua alma.
Voltamo-nos ao nosso preceptor:
– Quem ama não cobre com seu amor a multidão de pecados?
Tranqüilo, ele informou:
– Segundo os noticiários dos jornais da época, Palmira, esta jovem, embora amando a outro, contraiu núpcias com um senhor de boa posição social. Após inúmeros incidentes, ela e o seu primeiro amor praticaram o suicídio, alegando ser para não prevaricarem…
Notamos, ao lado da jovem, a figura de um moço também em grande sofrimento. Embora tão próximos, e um clamando pelo outro, não se viam.
– Palmira – apelamos para a sofredora criatura –, acaso Você não vê aquele com o qual se suicidou?
– Não! Nada vejo, nem mesmo os Espíritos, que comigo erram neste mundo.
Que noite! Que noite! E que véu espesso me circunda a fronte!
– Sofre com seu suicídio, Palmira?
– Tenho gelo nas veias e fogo na fronte!
– Sua situação será perene?
– Oh! Sempre! sempre! Ouço às vezes risos infernais, vozes horrendas que bradam: sempre assim!
Nosso arfar irregular denotava a emoção que nos possuía.
– Não se aflija – ponderou-nos Kardec. – Faz parte do seu quadro de conseqüências a perspectiva de que sua pena terá duração eterna. Contudo, a duração não é absoluta.
Outros gritos troaram na paisagem desolada, com homens e mulheres disformes emergindo de escura caverna do subsolo. Cegos ao meio em que se encontravam uns, outros dementados pelo horror da mutilação que em si mesmos praticaram no suicídio!
Nosso coração pulsava célere e perdíamos a consciência.
Prosseguimos, em outros aposentos, o contato com criminosos arrependidos e sustentamos diálogos com Espíritos endurecidos que, mesmo cientes de seu novo estado no Universo, persistiam em manter-se dentro da inércia deterioradora ou num âmbito de ódio e de orgulho!
No final, Allan Kardec permitiu-nos uma visão dos quadros das expiações terrenas e recolhemos um mundo novo de experiências junto a criaturas que, algumas, haviam desbaratado, por caprichos ou paixões, as oportunidades que a Providência Divina lhes confiara para o próprio restabelecimento, e outras que bem utilizaram os minutos reencarnatórios.
O derradeiro abraço foi em José Maitre.
Ele partira para a Espiritualidade após uma existência de inenarráveis agruras. Jovem, perdera a vista; aos quarenta anos, ficara surdo. Apesar de tais sofrimentos, tudo aceitou sem queixumes e em plena resignação.
– Qual a causa de sua sorte tão cruel?
– Na minha precedente existência fiquei cego, após excessos de todo gênero que, arruinando-me a saúde, me enfraqueceram o organismo. Ao invés, porém, de me atribuir a causa original dessa enfermidade, entrei a acusar a Providência, na qual, aliás, pouco cria. Reputada impossível a minha cura, resolvi antecipar-me à morte: suicidei-me. Despertei em Espírito, sim, porém, cego.
Após breve pausa, continuou:
– “Eu não sofria, mas impossível é descrever as angústias e tormentos espirituais experimentados. Quanto teriam eles durado? Ignoro-o…
Extenuado, fatigado, finalmente rendi-me à oração.
Apareceram os amigos celestiais.
E para provar a sinceridade de meu arrependimento, aceitei a reencarnação. Voltei, porém, trazendo a fé inata, razão por que não murmurei, antes aceitei a dupla infermidade, resignado, como expiação que era, oriunda de soberana justiça.”
No Além, cada um recolhe compulsoriamente a sua sementeira terrena: felizes estavam os que haviam feito boa plantação, no campo do Bem; sofredores e atormentados, os que espalharam espinheiros e lágrimas pelo caminho.
Secando o pranto indiscreto, que brotava do agradecimento pelas noções novas e eternas que aprendi naquela extraordinária Escola do Destino – “O CÉU E O INFERNO”, encerramos a nossa visitação, abraçando Allan Kardec, que nos conduzira pelos diversos departamentos da Vida onde cada criatura humana cria, no mecanismo da Justiça Divina, o seu próprio mundo de felicidade ou de tormentos.
– Senhor, abençoa os reveladores da tua Justiça Divina, que nos permitiu descobrir em Deus o Pai verdadeiramente misericordioso e bom… (*)
(*) N. do A. – O conteúdo desta entrevista são trechos Integrais de páginas contidas em “O Céu e o Inferno”, de Allan Kardec, 19º edição da Federação Espírita Brasileira
Fonte:
Roque Jacintho, “Convite” 1. edição, LUZ NO LAR.